‘A Cajuína’ de Caetano Veloso

Existirmos: a que será que se destina?

Pois quando tu me deste a rosa pequenina

Vi que és um homem lindo e que se acaso a sina

Do menino infeliz não se nos ilumina

Tampouco turva-se a lágrima nordestina

Apenas a matéria vida era tão fina

E éramos olharmo-nos intacta retina

A cajuína cristalina em Teresina

Defendem alguns teóricos da interpretação que textos, discursos ou documentos históricos devem ser sempre interpretados à luz da contextualização. Mas que contextualização? A socioeconômica geralmente. Alguns, entretanto, acreditam ser imperativo também se fazer uso do estudo da linguagem comum para uma mais profunda compreensão da real intenção do autor (atos ilocutivos da fala – vide teoria dos atos da fala de Austin).

Volto a este último ponto em outro post sobre hermenêutica e atos de fala, assim como o seu uso na análise histórico-crítica. Meu interesse neste post, nessa série ‘Ad lucem’, é trazer um pouco de luz a alguns textos, músicas, discursos. No geral textos históricos ou de grande interesse público.

Para começar essa série – e mesmo para sentir a repercussão e interesse geral na mesma – inicio com uma explicação curta, e nada especial, de um clássico de Caetano Veloso, por vezes interpretado por um viés equivocado: Cajuína.

De início, devemos entender o título: o que vem a ser uma cajuína? Cajuína é uma bebida existente basicamente no nordeste do Brasil, trata-se de uma espécie de suco de caju preparado artesanalmente e com aparência parecida à de um vinho branco. É muito consumida em Teresina, chegando a estar ligada às tradições da região.

Mas o que exatamente fala Caetano na música?

Bem, um pouco de contextualização histórica pré-Cajuína. A cena cultural brasileira nos anos 60 se mostrava bastante agitada. Os movimentos da contracultura e do experimentalismo cultural estavam em plena ascensão. Nossos artistas tentavam absorver o nacional, mas ao mesmo tempo usavam aquilo de fora que apreciavam. Nascia a tropicália, por exemplo, utilizando-se de tendências do rock-pop, do movimento antropofágico, da poesia concretista dos irmãos Campos, dentre outras.

Caetano Veloso, Gilberto Gil, Gal Costa, Os Mutantes são alguns dos grandes nomes envolvidos no tropicalismo. Um dos integrantes do movimento, entretanto, ficou no caminho. Não era um cantor, um artista que aparecia ao público, senão um compositor (letrista) e poeta. Escritor e jornalista, Torquato Neto ganhou fama por belas parcerias que lhe renderam letras com nomes fortes da MPB.

Torquato Neto foi perseguido pela ditadura militar e se exilou por alguns anos na Europa, juntamente com seus parceiros de escrita. Retornando ao Brasil, não conseguiu se adaptar a nenhum dos dois lados que se lhe apresentavam: nem a repressão da ditadura, nem a luta armada, enviesada e com a ideologia cega dos movimentos da esquerda radical. Sua sensibilidade aflorada e, talvez, visão mais ampla que tinha das coisas gritou mais alto e perdeu a luta da vida: suicidou-se em 1972 com apenas 28 anos de idade.

Torquato cobrou seu sofrimento reprendido com sua vida. Caetano conta que, já neste período, eles se encontravam pouco. Algum tempo depois, apenas, pode Caetano prestar uma visita a seu pai (o de Torquato) em Teresina. Estavam os dois sentados na sala, sozinhos na casa, quando o pai de Torquato decide servir-lhe uma cajuína. Inconsolável, chorando copiosamente, o senhor tenta inutilmente consolar Caetano. Em determinado momento, entretanto, ele decide ir ao jardim. Retorna com uma rosa, uma rosa-menina que tirou do jardim e presenteia Caetano com ela…

Um questionamento existencial, a razão maior de nossa existência, o sentido da vida… Para que,na verdade,existimos? E a reflexão dá origem à música. O silêncio, poucas palavras naquela mesa em Teresina. Uma cajuína, uma rosa menina, o sofrimento por conta do ‘menino infeliz’, cuja ‘sina’ não permite que se ilumine aquele momento, o coração e a própria existência dos dois.

Muitos interpretam essa música como uma música de amor, uma declaração a uma mulher talvez. Bem, é uma declaração, a expressão de um sentimento triste, um sofrimento. Uma declaração a um amigo perdido e à linda ação de um pai, cujo sofrimento devia ser deveras maior que o daquele amigo que se lhe apresentava, choroso e questionador de nossa própria existência.

Author: Leo Teles

Advisor to the President of CDL Salvador (Chamber of Retail Leaders of Salvador, Bahia, Brazil)

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